quarta-feira, 1 de junho de 2011

A defesa é o melhor ataque



Se costumam acompanhar o Bodyspace sabem que às vezes escreve lá um tipo que diz umas coisas muito engraçadas sobre o Milhões, e tal, e que uma vez por outra escreve baboseiras sem nexo acerca de discos de que gosta. Também saberão - se estiveram atentos e/ou são stalkers, que esse mesmo tipo fez alusão a um ensaio literário que andava a escrever sobre a poesia de John Agard comparada à dub poetry. Bem, parece que, pelo menos num contexto académico, esse ensaio foi bem escrito q.b. para lhe valer uma nota consideravelmente superior à que ele estava à espera. Ainsi, visto que tal o encheu do orgulho que não costuma ter, eis o ensaio em questão disponível para a leitura que ninguém irá fazer mas quanto mais não seja para injectar alguma vida neste blog. Até porque tem a ver com música. Um bocadinho, vá.

WARNING: LONG POST AHEAD
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ALL WE DOIN’ IS DEFENDIN’:
UMA COMPARAÇÃO ENTRE A POESIA DE JOHN AGARD E A DUB POETRY

Virtude de um omnipresente sentimento colonial na sociedade britânica contemporânea e, por conseguinte, nos círculos académicos que ditam as regras do que se considera como sendo uma gramática “correcta”, o crioulo foi, durante várias décadas, posto de parte e liminarmente rejeitado enquanto linguagem de cariz próprio, salvo as excepções que se consignavam ao estudo da linguística. Embora tal situação se tenha vindo a alterar nestes últimos anos, sendo que alguns crioulos foram já reconhecidos e oficializados enquanto “língua”, ainda é visto por uma larga fatia da população como um modo de comunicação rudimentar e selvagem, sendo observado com escárnio por parte da massa popular predominantemente caucasiana e escolarizada, por contraste com os povos menos estudados das antigas colónias, nomeadamente a Jamaica, tendo sido nesta nação que se assistiu à origem, nos anos setenta, daquilo a que chamamos dub poetry; literalmente, poesia declamada sob um ritmo dub, uma corrente dos estilos de música ska e reggae nascidos na década de sessenta e que coloca uma maior ênfase na percussão e nas notas graves. A poesia dub apresentava maioritariamente um cariz político e social, com eco nos movimentos e nas lutas raciais que se haviam verificado nos Estados Unidos na década anterior e que começavam igualmente a tomar forma no Reino Unido (como nos atestam os motins de Nothing Hill, em 1976). Um dos rostos maiores da dub poetry é Linton Kwesi Johnson, cujo álbum de 1978, Dread Beat an’ Blood, capta esse sentimento de revolta da juventude negra de então, especialmente na faixa “All Wi Doin’ Is Defendin’”:

(…)
Even dough dem think dem bold,
we know dem cold like ice wid fear, an we is fire!
Choose yu weapon then, quick!
All we need is bottles an bricks an sticks.
We have fist, we have feet,
we carry dynamite in we teeth.
Send fe de riot squad, quick!
Cause we running wild, bitter like bile.
Blood will guide their way, an I say:
all we doin' is defendin',
so get ready fe war, war…
Freedom is a very fine ting.
(Dread Beat An’ Blood, 1978)

Atente-se na linguagem utilizada pelo poeta: Linton Kwesi Johnson recorre ao crioulo jamaicano tanto para estabelecer um ponto de contacto com aqueles a quem se dirige – a segunda geração de emigrantes oriundos, particularmente, das Caraíbas – como enquanto símbolo da sua própria liberdade e enquanto arma contra os grilhões da sociedade dita “branca” e “culta”. A utilização desta forma de linguagem é tida como essencial, sendo encarada sobretudo como um acto de resistência perante uma sociedade composta pelos seus ex-colonizadores. Uma temática a que John Agard alude igualmente em vários pontos da sua obra poética, como é o caso de “Listen Mr. Oxford Don”, quando escreve “I only armed with me human breath / but human breath / is a dangerous weapon” (Agard: 2009, p. 16), retirando-se, de ambos casos, que não serão só os materiais de fácil acesso (“bricks and stones”) que constituirão as armas dos revoltosos, mas também a sua cultura e especialmente a sua língua: as palavras enquanto dinamite. Nesse mesmo poema, aliás, Agard assume a sua militância, e até mesmo algum espírito de guerrilha, na defesa de uma tradição e de um modo de pensar que a nação que o acolhe rejeita. Ele próprio admite ser um mero imigrante, sem quaisquer habilitações literárias de maior, que irá no entanto marchar contra a corrente aristocrática e/ou pretensiosa que o pretende reduzir a um mero criminoso (uma designação que, saliente-se, Agard utiliza como modo de denunciar o estereótipo racista de que o negro era alvo naquele período). A sua solidariedade para com os seus irmãos de língua está patente quando escreve “Dem want me to serve time / For inciting rhyme to riot” (Agard: 2009, p. 16). Depreende-se daqui a vontade de Agard, tal como a de Linton Kwesi Johnson em “All We Doin’ Is Defendin’”, em querer que o povo se erga contra os seus opressores, ou pela via da palavra, ou através de formas mais violentas de combate; mas esta mesma violência será figurativa, ou seja, Agard e Kewsi Johnson parecem apropriar-se, um intuito quiçá sarcástico, do estigma racial de que são alvo de forma a conferir um maior tom visceral aos seus poemas e assim ir de encontro ao sentimento dos restantes emigrantes, especialmente da facção mais jovem, por norma mais propensa à causticidade.

Para melhor entender esta visão da linguagem enquanto instrumento de combate (que não está, naturalmente, consignada aos dub poets ou sequer aos poetas afro-britânicos – na própria consciência portuguesa pós-25 de Abril teremos sempre presente a célebre canção-tornada-slogan de José Mário Branco, “A Cantiga É Uma Arma”), há que primeiro entender como é que o dub e o reggae foram consagrados enquanto meio primário de afirmação da população caribenha da década de setenta. Tudo se iniciará com as migrações de jovens jamaicanos dos centros rurais para um meio urbano como Kingston, a capital do país, que resultaram na “guetização” da população levando, por sua vez, a um certo vazio cultural. Tal irá ser preenchido por um estilo de música originário desses guetos urbanos, um novo género que funde a tradição africana já presente (a ênfase na rítmica) com as novas tecnologias e modos de produção: deram-lhe o nome de reggae. Ao contrário dos estilos que o precederam, como o ska e o rocksteady, o reggae não se baseava exclusivamente no imaginário folclórico; transformou a cultura jamaicana numa cultura urbana de gueto, e exportou esse sentimento de perseguição e de revolta para o mundo, através dos seus inúmeros grupos musicais, entre os quais os Wailers e a sua mais influente figura, Bob Marley (1). Do reggae nascerá o dub; essencialmente, esta expressão designava apenas o ritmo da canção reggae, e funcionava como uma remistura. Os singles da altura continham duas versões de uma mesma canção, sendo o lado A a canção em si e o lado B uma versão sem vocais. Eram estas versões que permitiam ao DJ, o operador do sistema de som omnipresente em bailes e festas, debitar mais do que algumas palavras antes de introduzir a próxima faixa (2). Assim, o DJ não se limitava apenas a trocar discos; encontramos aqui a génese dos primeiros MCs, ou Mestres de Cerimónias, que declamavam pequenos poemas sob o ritmo que se ouvia entre uma faixa e outra e que rapidamente se tornaram no foco principal destes agrupamentos, e que serão convertidos, um pouco mais tarde, em dub poets.

Sound systems and their DJs began to rule the cultural scene of Jamaica; wherever a system was set up to play, the inhabitants of a village or city neighbourhood would congregate. The focal role played by sound systems in social communication dates from these days. (Habekost: 1993, p. 56)

Embora John Agard não seja exactamente um dub poet, na sua obra encontramos o mesmo apego musical conferido às palavras (3). Tendo chegado a Inglaterra em 1977, ano em que o reggae tinha já uma facção de apoio considerável no país e em que o punk por ele influenciado começava a eclodir, Agard construiu a sua obra poética de acordo com a mesma base cultural africana que deu origem ao estilo jamaicano; não só pelo igual uso de expressões crioulas, mas também pela forte componente rítmica interligando cada verso. Não será de todo estranho cogitar que o poeta guianense possa ter sido influenciado, até certo ponto, pela música que se fazia ouvir então. Tome-se para este efeito o seu poema “Caribbean Eye Over Yorkshire”:

Eye
perched over
adopted Yorkshire

Eye christened
in Caribbean blue
and Trinidad sunfire

Eye tuned in
to the flame
tree’s decibels

and the red
stereophonic bloom of immortelles
(…)
(Agard: 2009, p. 125)

A utilização de expressões ligadas ao som (“decibels”, “stereophonic”) sugere que o poeta está consciente da força da música num ambiente hostil ao interlocutor. Tanto no reggae como noutros géneros de música de cariz negro não é a melodia o factor principal, mas o ritmo, a percussão hipnótica; o que constatamos na poesia de Agard é uma escolha minuciosa das palavras de forma a captar a atenção do leitor e colocá-lo num transe semelhante àquele que a música predispõe. Tal como numa qualquer canção dub, o poema vai fluindo de palavra em palavra, nunca se detendo, colocando de parte a pontuação e enfatizando a repetição silábica no final de cada verso, assim como a música o faz com o beat e com os graves. Neste poema é perceptível, de igual modo, o sentimento de indefinição do autor, ao encontrar-se “um estranho em terra estranha”, nomeadamente enquanto estrangeiro em Yorkshire, o que vai levar à sua procura pessoal por uma identidade e por uma cultura que lhe permita reconhecer-se e relacionar-se com os seus semelhantes. “Eye tuned in / to the flame / tree’s decibels” demonstra o seu apreço pela cultura e pelo território africanos, aqui aludidos através de duas espécies de plantas endémicas ao continente. Este desejo de voltar às raízes ancestrais e nelas encontrar a afirmação do Homem enquanto indivíduo está patente de igual modo em muita da música reggae, sendo que neste caso há que referir a gigantesca influência do movimento rastafári e do seu cariz religioso e afrocêntrico, onde o continente é visto como o berço de toda a humanidade, e particularmente a Etiópia encarada como a terra prometida, a nova Sião; esta é uma simbologia omnipresente (4). Tome-se como exemplo o simples “Zion’s Blood”, de Lee “Scratch” Perry:

Zion blood is flowing through my veins
So I and I will never work in vain
African blood is flowing through my veins
So I and I shall never fade away
(Super Ape, 1976)

Por contraste com John Agard, aqui já Lee Perry encontrou o seu rumo enquanto ser individual. Em apenas quatro versos encontramos dois diferentes sentimentos de pertença: o primeiro, o de pertença religiosa, em que o sujeito poético, ao afirmar-se enquanto crente, definiu de igual modo o seu destino, que será o da utópica terra prometida; e o segundo, o de pertença racial, ao identificar-se como africano, sugerindo que, como tal, nunca temerá a morte, pois pertence a uma comunidade mesmo que esta ou ele próprio não se encontre no país de origem. O uso de “I and I” remete para a interligação entre o seu lado espiritual e o seu lado carnal; Perry insinua que, da mesma forma que a alma não pode existir sem o corpo, um rastafári não pode ser algo que não africano.

No entanto, Agard irá debruçar-se sobre esta temática de formas distintas. Nos seus poemas “Encounter” e “Half-Caste”, o poeta procede ao estudo deste problema sob dois pontos de vista diferentes; no primeiro poema, Agard parece adoptar esta mesma linha de pensamento, pois que comenta que cada indivíduo será identificado perante os restantes através da cor e do credo que tenha, já que para ele não são superficialidades como um hino, uma bandeira ou um passaporte que fazem de alguém aquilo que é, mas aquilo que esse alguém traz no sangue e que tem como sua tradição (5). Já em “Half-Caste”, Agard não fala da raça enquanto característica identificadora do Homem – essa vai ser, ao invés, a sua própria existência enquanto ser vivo pensante. Notamos inclusive uma quase revolta, descrita sempre em tom jocoso, pela etiquetagem de alguém enquanto “mestiço”, e o poeta faz a defesa do cruzamento entre raças e tradições várias aludindo a exemplos de diferentes formas de arte que, usualmente, são encaradas como sendo de uma riqueza e beleza incomparáveis, como as pinturas de Picasso ou as obras de Tchaikovsky, comentando que cabe aos “não-mestiços” aperceber-se dessa mesma beleza (6). Temos, assim sendo, um choque entre duas correntes de igual valor; numa é defendido que o Homem é definido pela sua ancestralidade, na outra pela sua personalidade, não existindo, entre ambas partes, qualquer espécie de entendimento. Mas esta problemática parecerá ser resolvida pelo próprio Agard:

(…)
Love calls us back from simplification.

To reduce a nation to a label
To reduce a race to an assumption
To reduce a face to a formula of black and white.

To hang a stereotype around the heart
To build a wall with stones of conviction
To let the map dictate affection.

To allow boundaries their frozen dance
To grant frontiers their fixity of expression
To make a monument of an ism.

But love calls us back from simplification.
(Agard: 2009, p. 129)

Ou seja: a discussão em torno da raça ou do credo acaba por ser irrelevante quando equiparada a um sentimento puro como o é o amor. Agard luta aqui contra o espectro redutor da etiquetagem de um indivíduo com a sua respectiva proveniência, ao mesmo tempo que apela à convivência entre todos os diferentes povos e fés – um sentimento encontrado igualmente em muita da música reggae, vindo de imediato à cabeça o clássico de Bob Marley, “One Love”. O conceito de “fronteira”, ao contrário daquilo que é verificado nos poemas dub mais militantes, que advogam o orgulho na pátria e na raça de origem e uma batalha pela aceitação (e, nalguns casos, até mesmo pela conquista) da maioria branca, adquire aqui um novo significado. Age como uma barreira que impede o ser humano de se relacionar verdadeiramente com o seu semelhante, e cuja natureza deve ser travada de modo a não se cair na simplificação do relacionamento humano, onde o passaporte fala mais do que o coração.

John Agard nunca teve uma visão única da sociedade que o rodeia, ao contrário da militância reggae que ainda faz, em diversos sectores, do rastafárianismo uma bandeira, embora nos últimos anos, com o advento do dubstep – uma forma musical em que o groove presente no dub se alia a ritmos modernos de dança e onde o lirismo tem progressivamente perdido a sua importância – essa mesma bandeira tenha vindo a perder a sua força em nome do hedonismo. Assistimos na poesia de Agard a uma evolução interessante no seu pensamento: ao mesmo tempo que demonstra o seu orgulho nas suas raízes e na sua língua materna, assume que nada disso tem qualquer importância perante a banalidade dos rótulos. E, mesmo nos seus momentos poéticos mais agitados, nunca atingiu a visceralidade de um poeta como Linton Kwesi Johnson, que fazia apelos à luta armada; Agard parece encarar essa mesma luta com um tom irónico e um forte sentido de humor. Digamos dele, então, ser um poeta à margem das margens. Porém, e até porque nenhuma temática é uma ilha, a musicalidade e o sentido lírico presente na sua obra é suficiente para que encontre o seu lugar junto de outros poetas de rua, como é o caso da vaga originária da Jamaica. Não é de todo estranho que Agard tenha encontrado a sua maior falange de apoio junto da juventude contemporânea, para quem a música é uma forma de vida e a mais acessível das formas de arte.



(1) Um sentimento que chegou até a dois outros movimentos que actua(va)m nas margens da sociedade, como o punk, atestando-o canções como “Ghetto Defendant”, dos Clash, com a participação de Allen Ginsberg – o presente chegando ao passado – e o hip-hop, que fez do gueto, praticamente durante toda a sua história, tanto uma bandeira contra a opressão das minorias como enquanto modo de afirmação individual.
(2) “The sound systems were operated by dee-jays (…) originally these had the quite restricted function of changing the records, announcing the next song, and introducing it with a few witty comments and rhymes.” (Habekost: 1993, p. 56)
(3) Algo muito melhor testemunhado assistindo a uma das suas muitas prestações ao vivo: recomenda-se para este efeito o DVD John Agard Live!, de Pamela-Robertson Pearce, 2009.
(4) Uma crença bíblica antiga, agravada pela influência de Haile Selassie I, imperador da Etiópia entre 1930 e 1974, encarado por muitas das correntes rastafári como a reencarnação de Cristo.
(5) “What makes you you / and me me? (…) Is it the anthem (…)? Is it the flag (…)? Is it the passport (…)? Or is it the baggage / of skin and creed / that makes one say / not one of us, one of them?” (Agard: 2009, p. 26)
(6) “(…) yu must come back tomorrow / wid de whole of yu eye / an de whole of yu ear / an de whole of yu mind” (Agard: 2009, p. 124)

BIBLIOGRAFIA
Activa:

AGARD, John, Alternative Anthem, Bloodaxe Books, 2009

Passiva:

HABEKOST, Chistian, Verbal Riddim: The Politics and Aesthetics of African-Caribbean Dub Poetry, Rodopi, 1993

Discos mencionados:

Poet And The Roots, Dread Beat An’ Blood, Front Line Records, 1978
The Upsetters, Super Ape, Island Records, 1976

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