sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

Burial - Antidawn

 


Não me interpretem mal. Eu não odeio o Burial. Porra, eu adoro o Burial.

Esperem, talvez "adoro" seja uma palavra demasiado forte. Digamos que eu compreendo o Burial.

Não que seja preciso compreendê-lo para apreciar a música que ele faz. Não é como se compreender o homem, ou as suas ideias, fosse condição sine qua non para botar a tocar a 'Southern Comfort', a 'Near Dark', a 'Ashtray Wasp' ou a 'Dark Gethsemane' (mencionando apenas algumas, para não escrever, naquele estilo muito rockista, que os álbuns e os EPs devem ser escutados do início ao fim, sem paragens). 

Além do mais, como compreender um homem que, ao longo de toda a sua carreira, se tem mantido afastado não dos corredores da fama - porque nunca se poderia ser famoso a fazer a música que ele faz a não ser que houvesse uma qualquer revolução - mas das próprias noções de mediatismo e imediatismo? Como compreender um homem que num mundo onde o Instagram é um poder tem menos que uma mão cheia de fotografias suas espalhadas pela Internet? Como compreender um artista que, aparentando rejeitar a promoção do seu próprio trabalho ("aparentando", porque essa mesma rejeição acaba por agir como promoção ao seu trabalho - o Mark Fisher, dos poucos que o entrevistou, deve ter escrito qualquer coisa gira sobre o assunto), não se deixa conhecer? Quando escrevo "compreendo", é muito possível (ou, admito, inteiramente verdade) que esteja a romantizar a ideia que tenho dele: um gajo tranquilo, sem merdas, que para fugir ao ennui suburbano decidiu compor umas malhas sem preconceito ou pré-concepção, apenas e só porque lhe deu na real gana, sem se lembrar de que por boa parte do mundo ocidental alguém iria ouvi-las e pensar epá, isto faz-me sentir o que sou.

E é por isso que eu digo que compreendo o Burial. Porque ele me faz sentir o que sou: um gajo do subúrbio, não muito afastado do grande centro de decisão, de cultura, de entretenimento - a cidade -, mas afastado o suficiente para que esse centro pareça tão distante que só uma mudança radical no meu modo de vida (como, sei lá, tirar a carta - sabem o que é ser um adolescente nos subúrbios e mal esperar para poder tirar a carta só para poder ir beber copos e ver concertos à cidade?) encurtaria o espaço que vai daqui ao sonho.

Já o escrevi, noutro lado (julgo eu; se calhar disse mas não escrevi), que é preciso ter crescido no subúrbio - entidade estranha e aflita para a qual mil designações existem sem que nenhuma esteja completamente errada - para compreender realmente o Burial. E não apenas durante uma parte ínfima da nossa vida no planeta, mas mais ou menos desde a primeira ganza fumada aos 13 anos até ao primeiro estágio profissional. Mais ou menos desde o momento em que começas a fazer merda com os amigos porque não há mais metafísica no mundo que não a de fazer merda com os amigos para mostrar a toda a humanidade que estás vivo (nesse sentido, outra coisa que também costuma bater bem é o sample usado pelos Radio Dept. naquele pedacinho de magia chamado 'Never Follow Suit'). Mais ou menos desde a primeira vez que foges da bófia até ao dia em que dás por ti no último comboio da noite, depois de horas e horas a tirar notas na faculdade ou a fazer o trabalho de merda que o teu patrão não quer fazer, a olhar pela janela na direcção de todas as fábricas abandonadas, todas as paredes pichadas, todos os candeeiros fundidos que constituem a paisagem que rodeia a tua freguesia, um hotel gigante onde o pequeno-almoço é servido a correr.

Porque das poucas coisas que se sabem sobre o Burial, além do nome, que francamente não interessa - nunca ninguém lhe vai chamar William, ou Billy, ou Sr. Levan - será sempre o Burial -, é o facto de ele ter crescido no subúrbio: Londres Sul, que lá por ter "Londres" no nome não deve deixar de ser semelhante a todos os outros subúrbios de todos os outros países industrializados. Basta isso para pintar um retrato (novamente, eventualmente romantizado) do seu crescimento. Isso, e uma fotografia da escola onde andou. Isso, e esta citação de uma entrevista à Wire:

I was brought up on old jungle tunes and garage tunes that had lots of vocals in but me and my brothers loved intense, darker tunes too, I found something I could believe in [...] My brother might bring back these records that seemed really adult to me and I couldn’t believe I had 'em. It was like when you first saw Terminator or Alien when you're only little. I'd get a rush from it, I was hearing this other world...

É isto - I was hearing this other world - que torna o Burial tão identificável para quem mora no subúrbio. Moro no mesmo bairro há mais de 25 anos e provavelmente não chega à dúzia o número de concertos (falando especificamente de concertos porque eu gosto é de música, e bola, duas coisas também elas, hm, suburbanas) que vi na minha cidade. Não porque tenha ignorado os outros; mas porque simplesmente não houve mais, e dentro dessa dúzia já incluo os espetáculos pimba que todos os anos cá metem em honra do santo padroeiro. No caso concreto do Burial, foi o jungle que lhe abriu as portas, assim como no meu podia ter sido o kuduro ou a kizomba se eu nesses verdes anos estivesse mais interessado em tarraxar que em foder os ouvidos com os decibéis absurdos do metal. Para ele, o jungle não era apenas música: era uma escapatória da sua própria condição, o El Dorado que existia além das paredes carregadinhas de humidade do prédio onde (provavelmente) morava. O jungle e por arrasto as raves constituíam uma verdade que lhe era escondida pela distância.

Pelo que, ao longo de toda a carreira, o que o Burial tem tentado fazer é regressar a esses tempos em que havia uma verdade passível de ser alcançada, assim que as condições materiais fossem favoráveis. Como essa verdade já não existe - culpa da gentrificação, das dores de crescimento ou do facto de o jungle já não ser modinha como o foi durante um certo período dos anos 90 - cada malha que ele produz age como uma espécie de lamento por um ideal, ora não concretizado, ora engolido pela máquina, não só a do capital como a do tempo. Uma lágrima nostálgica por um período em que os teus amigos, os meus amigos, os amigos dele constituíam uma sociedade dentro da sociedade, e que desaparece assim que esses mesmos amigos crescem, arranjam empregos, conhecem outras pessoas, têm filhos e só te veem um par de vezes por ano.

Mas onde é que eu ia, ou onde é que eu queria ir, antes de começar a escrever esta patacoada, que é também ela uma fuga ao ennui que estava a sentir num dia suburbano, frio de inverno, depois de ter despachado trabalho mal pago?

Ia falar do "Antidawn". Que é o novo EP do Burial, ainda que com 40+ minutos mais se assemelhe a um longa-duração (e isso é outra discussão e, diga-se de passagem, é uma merda de discussão: quem é que quer saber?). E que, ao contrário de tudo o que ele já fez, não é genial. Bem, o "Rival Dealer" também não era. Mas este consegue algo que até agora a música do Burial não (me) tinha provocado: sono.

Sem dúvida que será a ausência do beat - coisa também ela romantizada e equiparada aos nossos próprios ritmos cardíacos - que leva a que "Antidawn" não seja o regresso que esperava, ainda para mais quando foi precedido por duas das melhores faixas que ele fez desde o já mítico "Untrue": a 'Chemz' e a 'Dark Gethsemane'. O problema é mesmo o sono que cinco faixas ambientais provocam, e a recusa do Burial em ser aquilo que é (aquilo que eu espero que ele seja): o gajo do subúrbio, e não o próprio subúrbio, não a antropomorfização do local onde o tempo não é parado mas, pior ainda, corre extremamente devagar, à semelhança de todas as cinco faixas aqui presentes. Se ele passa a ser o próprio espaço, se se deixa engolir, para onde é que remeteu a sua capacidade de sonhar com outros mundos? Para onde foi o ritmo das fábricas e dos carris, o que aconteceu à estrada que eventualmente o levaria ao jungle ou às raves ou a outra coisa qualquer?

Mas talvez eu esteja a ser injusto e "Antidawn" seja apenas a conclusão lógica de tudo aquilo que ele já fez, o álbum chill out no fim da rave, de forma a que as drogas que consumiste desapareçam suavemente do teu sistema e não à cacetada do dia que nasce (daí o título). Talvez tenha sido, pela primeira vez, um trabalho propositado e não, à semelhança dos outros, algo nascido da espontaneidade - de um pensamento único, de uma vontade de escapar. O que explicaria o facto de este EP ter sido precedido por uma nova fotografia do homem, boca escondida mas sorriso detectável no meio da neve.

"Antidawn", pese embora todas as suas falhas, é provavelmente o primeiro disco em que o Burial se decidiu ocultar de vez, impedindo, através da transformação total da sua paleta sonora - agora reduzida à crueza das vozes sampladas e nada mais - quaisquer romantizações passadas, salto gigante neste parkour do gato e do rato que anda a alimentar desde que assinou pela Hyperdub. O que seria, no fundo, uma jogada genial e uma chapada na tromba de todos os anormais de óculos de massa com camisolas pretas que acham que conhecem a pessoa sobre a qual escrevem.

Foda-se, afinal não compreendo o Burial. Mas adoro-o.